sábado, 30 de julho de 2011

O lado B de Amy Winehouse

Drogas, agressão à pele em forma de enfeite, perda da autoimagem. Os fãs se identificavam com seu comportamento, mas não notaram a gravidade de sua doença psiquiátrica

Antonio Carlos Prado

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Não houve glamour na vida e muito menos na morte de Amy Wine­house. Houve doença, uma intrincada enfermidade psiquiátrica denominada Transtorno da Personalidade Borderline – suas portadoras (predomina em mulheres na proporção de gênero de três para um entre a população mundial adulta) são invadidas constantemente por avassaladores sentimentos imaginários de abandono e sofrem terrível desmoronamento do ego, desintegração da identidade e da autoimagem. São impulsivas, mantêm suas relações interpessoais como um elástico que se tensiona ao máximo, as suas emoções e humor são fios desencapados em curto-circuito. Sentem-se esburacadas e autolesionam a pele para aplacar a dor da alma, sempre encharcada pela sensação, quase nunca real, de perda de pessoas que lhes são queridas. Assim, nesse inferno psíquico, viveu Amy Winehouse, falecida em Londres no sábado 23 e cremada na terça-feira segundo os preceitos religiosos judaicos. O funeral ocorreu sem que se soubesse com precisão a causa da morte, e isso só virá a público em algumas semanas, assim que a médica legista Suzanne Greenaway concluir os exames toxicológicos das vísceras retiradas do cadáver da cantora. Seja qual for a causa, no entanto, um fato está dado: mais do que simplesmente morrer, Amy descansou um corpo maltratado, um cérebro embotado e um músculo cardíaco esmagado pelo uso ininterrupto, abusivo e nocivo de vodca e coquetéis de outras drogas que chegaram a cruzar cocaína, heroína, anfetaminas, ecstasy e até quetamina (anestésico de cavalo). Em outras palavras, ainda que a causa mortis não revele overdose, sua precoce partida aos 27 anos foi acelerada pelo Transtorno de Abuso de Substâncias como um transatlântico que se dirige loucamente para espatifá-lo contra um iceberg.

O Transtorno de Abuso de Substâncias é, digamos assim, uma das franjas visíveis, concretas e palpáveis do Transtorno da Personalidade Borderline, e também uma de suas marcantes características. Essa expressão inglesa significa fronteira ou fronteiriço e foi utilizada pela primeira vez para determinar um tipo específico de distúrbio patológico da personalidade no final da década de 1960 pelo pesquisador Otto Kernberg – nos primórdios da psicanálise ela servia para designar a fronteira entre a neurose e a psicose, serventia essa totalmente desconsiderada pela psiquiatria moderna, que cravou um diagnóstico próprio da doença. A rigor, ser Amy Winehouse não é para a mulher que quer, é para a mulher que pode. Isso vale para sua fenomenal voz de branca a cantar como uma diva negra do soul, mas esqueçamos a voz e continuemos concentrados em seu comportamento. Ou seja, para ser a turbulenta Amy há de trazer consigo “pesadas ferramentas” biológicas, psicológicas e ambientais para desenvolver tal tipo de personalidade. É por isso que se diz, aqui, que não é para quem quer, mas, tristemente, para quem pode – e, creiam, a mulher que possui tais ferramentas agradeceria à ciência ou a Deus se com elas pudesse nunca ter entrado em contato, assim como Amy, aos berros e na impulsividade, ou aos prantos e na depressão, muitas vezes implorava querer “ser trocada por outra”.

No campo psicobiológico, aquilo que se chamou de “ferramenta” pode ser traduzido tecnicamente pelo funcionamento descompassado no cérebro do neurotransmissor serotonina. Tentativas recorrentes de suicídio são traços do transtorno e estudos recentes constataram concentrações mínimas do ácido 5-hidroxiindolacético (5-HIAA, metabólito da serotonina) em pessoas deprimidas que haviam tentado suicídio. No campo ambiental, pesa na infância a negligência ou a desatenção dos pais, abusos físicos, emocionais ou sexuais da criança. Pois bem, tentativas de suicídio – praticamente crônicas – não faltaram na vida da cantora ao utilizar drogas e cruzar vodca (sua dependência química prevalente) com medicamentos (cerca de 6% das borderlines que tentam suicídio conseguem consumá-lo, aproximadamente 60% de mulheres em ambientes institucionais psiquiátricos ou prisionais são borderlines). Quanto ao ambiente, sabe-se que seu pai, Mitch, disputava desde cedo com ela a atenção da mãe, Janis.

Na idade adulta, o que se viu foi novamente o pai taxista tentando pegar carona na fama da filha a ponto de lançar-se como cantor, atitude que arrastou Amy para uma profunda depressão – tal comportamento de Mitch voltou a ser criticado nos últimos dias pela imprensa inglesa e americana.
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TRANSFERÊNCIA
Os fãs põem litros de vodca em frente à casa de Amy: identificação com seu alcoolismo
Falou-se antes da constante oscilação e perda da autoimagem e identidade como fortes componentes do Transtorno da Personalidade Borderline, e nesse buraco da identidade é que entram, por exemplo, a droga e o “lance da pele” (é como se faltasse uma pele protetora do ego), que vai da dermatotilexomania (provocar escoriações no próprio corpo) ao prazer ou autoagressão em se cobrir de tatuagens. Ao não ter fixada uma identidade em si nem um ego consistente, Amy, até por viver sobre palcos e sob refletores, fez da sua pseudoimagem de adicta a sua própria identidade enquanto pessoa – ou, na inteligente e sensível expressão do professor de psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo Ronaldo Laranjeira, para a cantora “a doença fazia parte de uma liberdade poética”. Os seus fãs incondicionais, o público em geral e a indústria da música, por sua vez, “compravam” e “vendiam” essa identidade, era cada vez mais essa a identidade que esperavam de Amy e, perversamente, de forma involuntária ou não, a reforçavam. Em meio a tudo isso e a todos, ela era idealizada e idolatrada quando parava em pé no palco, desvalorizada e ridicularizada quando se exibia cambaia, como aconteceu ainda esse ano em seu último show, na Sérvia. Incrível, poucos viram que ali não havia nada além de doença.

O público sempre é passional e volúvel. Quanto aos fãs, com certeza é com carinho e boa intenção, mas também com grande dose de ignorância sobre saúde mental, que levam garrafas de vodca ao santuário que se montou diante da casa da cantora no bairro boêmio londrino de Camden Town – se Amy só se identificava com a Amy alcoolista, os seus fãs, num processo quase psicoterapêutico de transferência, também se identificam com essa Amy. Para a indústria do som, cifras nos olhos, o que não é lucro não está no mundo, e já festeja que o álbum “Back to Black”, de 2006, saltou para o primeiro posto na lista de mais vendidos nos EUA assim que a morte da artista foi anunciada.

Nos buracos do cenário borderline, cenário com simbólicos pregos emocionais por todos os cantos, a portadora do transtorno vai pondo tranqueira atrás de tranqueira na busca desesperada de preencher o seu vazio e aliviar o “torno psíquico” que não cessa de apertar. É comum encontrar-se mulheres presas que são borderlines e deveriam estar em tratamento e não encarceradas – acabam presidiárias porque, na ânsia de se “colarem” ao outro para ter uma identidade psíquica, muitas vezes se “colam” em tranqueiras traficantes. Elas anônimas, Amy Winehouse famosa, a história é a mesma. A cantora, no auge de uma de suas crises, casou-se em 2007 com o produtor e traficante (olha aí!) Blake Fielder-Civil. O relacionamento durou dois anos e a maior parte dele Blake passou na cadeia – e lá continua por roubo e posse de arma que não era verdadeira, era de brinquedo (ele não foi autorizado a sair da prisão para ir ao funeral). Agora, funeral feito, o que não faltam são vozes a dizer que Amy errou, não se tratou medicamente, não aproveitou as internações: “tentaram me mandar para reabilitação/eu disse não, não, não/ele tentou me mandar para reabilitação/mas eu não vou, vou, vou”, diz uma de suas famosas canções, chamada “Rehab”. Os que agora a criticam, e certamente entre eles há os que depositam garrafas de vodca diante de sua casa vazia, precisam saber que Amy era, em essência, enferma. Em “Beat The Point To Death”, ela cantou: “além disso estou doente/de ter de encontrar alguma paz”. Amy hoje tem paz, o “torno” borderline afrouxou-se, a montanha-russa borderline cessou de despencar, mas é a inútil paz dos mortos, não a fecunda paz dos vivos. De fato, não houve nenhum glamour em sua vida e muito menos em sua morte.
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